«(...) Adorava aquela berraria de revolução débil como os rapazes de hoje se apaixonam pelo futebol. Sabia de cor os nomes dos tribunos. Conhecia-lhes o estilo, as imagens predilectas, os argumentos infalíveis e as apoteoses finais com girândolas de pombas e palavras a estoirarem fósforos de cor.
( ... ) E todos, em redor de mim, faziam o mesmo. Aplaudiam e berravam e choravam e cantavam como se aquela chusma de homens de "pêra" romântica tivessem exactamente a mesma idade do que eu e usassem também, por dentro, calções até aos joelhos e colarinhos à bébé ande apetecesse escrever "vivas à República" com o sangue dum dedo picado.( ... ) a recordação dos comícios, tão arreigados em mim, não me quis abandonar, nem à força de duches da razão. Persistiu. Resistiu. Insistiu. Continuou.
( ... ) é possível que todo aquele fogo humano e purificador fosse, afinal de contas, projectado pela minha alma de colarinhos à bébé. E eu, infelizmente, já envelheci. E o mundo, à minha roda, também envelheceu ao mesmo tempo que eu. (Mas não há meio de morrer, o estafermo!)»
in “O Mundo dos Outros” no cap. "A infância Estragada", em que José Gomes Ferreira, nascido a 9 de Junho de 1900, recompõe a rua republicana e a sua conhecida normalidade da agitação, provocada, neste caso, pelos comícios, e também por um sem número de cortejos, greves, atentados, sabotagens, intentonas, revoluções que agitaram os dezasseis anos do regime, entre 1910 e 1926.